Como todos devem imaginar, falo com muitos pais diariamente. Assim, tenho o retorno de muito do que se passou durante este período de confinamento nas diferentes famílias que tenho o privilégio de acompanhar. Talvez não sejam representativas da nossa população, mas verifiquei muitos pontos em comum, que julgo não serem coincidências.
Nunca as crianças “pensaram” passar uns meses tão felizes – pai e mãe (ainda que alguns a trabalhar remotamente) a acompanhá-los em permanência, em regime de 24/7. O sonho tornado realidade! Aquilo para que eles estão programados, o que está “escrito nos seus genes” feito em cada dia, todos os dias…
Por isso estiveram felizes, muito felizes, a usar e abusar da paciência dos pais, que se viram obrigados a inventar brincadeiras e entreténs, quantas vezes para mais do que um filho, com idades diferentes e por isso interesses e necessidades diferentes. Mas curiosamente não ouvi queixas. Confissões de algum cansaço, sim, mas muita vontade de continuar com eles em casa. Tanto mais que otites, bronquiolites, ranhos perenes, tosses infindáveis desapareceram como por magia.
Muito interessante também foi a constatação que as mães e os pais fizeram dos saltos de desenvolvimento destas crianças confinadas. Quantas vezes oiço dizer: vamos enviar para o infantário por causa do desenvolvimento. Mas agora confessam, com justificado orgulho, que enquanto estiveram em casa a “fala está muito mais desenvolvida”, as “gracinhas são tantas e tão divertidas”, “anda e corre pela casa com grande desenvoltura”, “ajuda nas atividades caseiras com prazer”. Dos “amigos” da escola quase não falam e a maior parte recusa aderir às atividades que as educadoras sugerem pelo teams/zoom/etc, ou sequer interagir por essa via.
Mas agora as creches vão abrir e a preocupação é grande. Tantos são os telefonemas: como fazemos? Será seguro voltar? Ainda ontem a esse propósito o presidente da OMS, Tedros Gebrayesus dizia que a abertura das escolas (em sentido genérico presumivelmente) deve ser pensada cuidadosamente, até porque não se sabe tudo acerca da contagiosidade e manifestações da doença nas crianças.
Também em relação às medidas que vão ser implementadas pelos infantários e de que saíram hoje as orientações da DGS pergunto-me como será possível serem colocadas em prática na maior parte dos infantários? E mais grave, ao serem implementadas que consequências terão para a saúde mental destas crianças: faces mascaradas, afastamentos impostos. São crianças dos 4 meses aos 3 anos, para quem o contato, o afeto, o toque são fundamentais. Ainda ontem uma das crianças que eu sigo e que acabou de fazer os 3 anos confidenciou à mãe: “Gosto muito da Dr.ª Graça, mas ontem ela estava muito feia, com aquela máscara!”. E não há criança de colo cuja mãe tenha a máscara posta, que a criança não tente denodadamente removê-la.
Quem fala comigo já há muito que sabe o modo como eu defendo que as crianças não devem ir para o infantário até aos 3 anos (pelo menos). É com a família que eles devem permanecer. Teríamos agora uma oportunidade de ouro para repensar o modo como a sociedade vê e acolhe a criança, no entanto, a opção foi por serem os primeiros “sacrificados”. É triste e preocupante, é ainda e sempre a economia a prevalecer, é o não saber pensar no futuro da nossa sociedade.